Lei 10.639/03: quando a escola decide o que lembrar, também decide quem esquecer


Lei 10.639/03: quando a escola decide o que lembrar, também decide quem esquecer

O Brasil que se recusa a conhecer a si mesmo jamais será verdadeiramente educado

Em um país onde mais da metade da população se autodeclara negra ou parda, o apagamento da história afro-brasileira nos currículos escolares é mais do que uma omissão: é uma negação identitária. A Lei nº 10.639/2003, ao tornar obrigatório o ensino da história e da cultura africana e afro-brasileira nas escolas de educação básica, tenta corrigir séculos de silêncio institucional. Mas será que a escola brasileira realmente escutou esse chamado?

Publicada há mais de duas décadas, a lei representa um divisor de águas ao reconhecer que o currículo tradicional é também um campo de disputa simbólica. Afinal, o que se ensina na escola não é apenas conhecimento, mas uma narrativa sobre quem somos como nação. E quando essa narrativa silencia vozes negras, ela perpetua desigualdades e desumanizações.

 O filósofo Achille Mbembe nos lembra que a escravidão não é apenas um passado — ela é uma tecnologia de poder que ainda estrutura relações sociais, econômicas e culturais. Assim, ensinar a história afro-brasileira não é um ato de “inclusão”, mas de reparação e justiça histórica. É reconhecer que Zumbi dos Palmares, Carolina Maria de Jesus, Lélia Gonzalez, Luiz Gama e Abdias do Nascimento não são “adendos”, mas protagonistas de uma história que a escola se acostumou a omitir.

Segundo o IBGE, 56,1% da população brasileira é composta por pessoas negras (pretas e pardas), mas esse número não se traduz em protagonismo nas representações escolares. O Censo Escolar 2023 mostra que, embora a diversidade racial esteja presente entre os estudantes, ela ainda está sub-representada no corpo docente, na literatura indicada e nos conteúdos ministrados. A ausência de materiais didáticos que abordem a história e a cultura afro-brasileira de forma aprofundada é um reflexo da resistência estrutural à aplicação da lei.

Além disso, a Lei 10.639/03 insere no calendário oficial o Dia Nacional da Consciência Negra (20 de novembro) — não como uma data comemorativa qualquer, mas como uma oportunidade de reflexão crítica sobre os efeitos persistentes do racismo. E aqui vale retomar bell hooks, que apontava a educação como um ato profundamente político. Segundo ela, ensinar é sempre um gesto de posicionamento: podemos ensinar para o silêncio ou para a liberdade.

No entanto, muitas escolas ainda tratam essa lei como um projeto pontual, restrito ao mês de novembro, com apresentações folclóricas que reforçam estereótipos, em vez de desconstruí-los. A resistência institucional à aplicação plena da lei revela o incômodo: ensinar a história afro-brasileira é também confrontar privilégios e repensar a branquitude enquanto norma.

A escola não pode continuar formando cidadãos com uma visão eurocêntrica da história do Brasil. Ensinar a história afro-brasileira é ensinar o Brasil a reconhecer seu verdadeiro espelho — aquele onde o mito da democracia racial não sobrevive ao primeiro olhar crítico.

Referências

BRASIL. Lei nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003. Altera a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira”. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 10 jan. 2003.

IBGE. Síntese de Indicadores Sociais 2023: uma análise das condições de vida da população brasileira. Rio de Janeiro: IBGE, 2023.

INEP. Censo Escolar da Educação Básica 2023. Brasília: Ministério da Educação, 2024.

MBEMBE, Achille. Crítica da razão negra. São Paulo: N-1 Edições, 2018.

HOOKS, bell. Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2013.

GONZALEZ, Lélia. Por um feminismo afro-latino-americano. Rio de Janeiro: Zahar, 2020.


Postar um comentário

Postagem Anterior Próxima Postagem